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Memória é imagem
- Imagem é memória

O presente não é um passado em potência,
ele é o momento da escolha e da ação.

Simone de Beauvoir

O presente, permeado pela memória e pelo desejo, convoca continuamente o futuro. Como um
caminhar, o agora é sempre movente. Urgente. Em virtude dessa mobilidade do tempo é que Greice
Cohn tem se dedicado a ordenar e registrar as suas memórias, recordações, materiais e projetos numa
pesquisa que fala de perenidade. Neste sentido, a sua obra atua sobre o tempo, nele transitando e
operando uma transformação através das recordações e da ação contínua sobre os materiais e sonhos.


Em seu percurso, iniciado nos anos 90, a artista atravessou os domínios da performance, da pintura,
do vídeo, do cinema e do ensino. Sua trajetória plural nos conduz até o momento presente em que se
debruça sobre as noções de ancestralidade, sonho e memória, retirando destas os interesses que
constituem a base dos seus trabalhos. Resultante da pluralidade, a escolha dos suportes que utiliza
para produzir as obras revela uma atenção constante em descobrir na materialidade prosaica da vida
um meio de estruturação de seus projetos. Por sua vez, a proximidade com o cinema, notadamente o
pensamento de Jean-Luc Godard, trouxe consigo mais uma camada ao seu trabalho: a noção de
montagem. Esta, perceptível não somente nos filmes, mas também no modo como constrói a pintura.
Assim, antigos tecidos, linhas, fotografias, caixas, cadernos, folhas e outros materiais que
ressignificados conferem um sentido histórico para as suas obras.


A experiência da pintura que a artista realiza evoca constantemente as suas memórias e os afetos que
a acompanham desde a sua infância. Nela, a figuração revela personagens que ocupam um lugar de
distinta consideração. Simbolicamente, as pessoas que habitam o passado têm as suas existências
afirmadas na forma pictórica, que compostas com cores vivas ensejam uma presença, um elo entre o
ontem e o hoje. Não menos importante que as figuras os materiais utilizados também contam do
processo da artista que recolhe suportes como o papelão – das caixas de entrega – e os transforma em
instâncias visuais de sua pintura. Cada recorte pigmentado apresenta os signos de ancestralidade e
persistência. Pois, se a memória perdura enquanto está acesa, estas figuras trazem consigo um fluxo
não interrompido de vida que perpassa a poética de Greice Cohn.


Se em uma dimensão, a artista conforma as suas recordações em imagens fazendo-as permanecer
como estrelas brilhando, como flashes cinematográficos, como vagalumes, em outra, transforma-as
em uma etapa real do sonho através de uma ação ativa e complementar no bordado. Ao mesmo
tempo que as casas, animais, pessoas aparecem em seu trabalho, o gesto manual – nítido também na
pintura – surgem como interrupção temporal, em um fluxo que conduz o observador de volta ao
presente. Pois, é entre o sonho e o agora que as projeções visuais de Greice se estruturam. Imagens
remanescentes de sua juventude em Itaparica (BA), sorrisos de mulheres que mimetizam uma vida
inteira na superfície ondulada do papelão, na trama do tecido, na persistência das lembranças. Em
sua poética, imagem é memória, e, memória é imagem que perdura, sempre em movimento.

O sonho também consiste como uma etapa do pensamento figurativo da artista. Através dele fica
estabelecido um modo peculiar de apresentar a imagem, que nunca é direta, há nela mesma um
aspecto difuso que conduz o olhar a uma atenção não linear, apesar de conexa. Nas “Saras”, nos
quadrinhos, nos filmes e vídeos, a presença do sonho e da memória estrutura a obra. Sobre o terreno
do desejo e do inconsciente é que são ampliadas as formas de produzir os trabalhos, mesclando
técnicas, deixando falar os materiais, liberando o fluxo imagético contido nas lembranças. Para
Greice, imagem é plataforma de sonhar. Tocar o imponderável. Assim, afirma a possibilidade de
sonhar com a vida e fazer da vida aquilo que se sonha, num ciclo que estabelece o desejo. Fazendo
nascer dele a obra e, com ela, a própria vida da artista apresentada através de suas memórias, ideias,
projeções. A unidade poética de sua obra, apesar do interesse diversificado nos materiais e meios,
reside justamente no exercício de deslocar constantemente imagens para os suportes prosaicos de sua
pintura. Cada material importa, cada imagem possui valor, cada recordação é vida.


Imagem é memória para Greice. Por isso, ela tem se ocupado de apresentar ao seu observador as suas
narrativas, tecendo um contexto em que materiais, lembranças e projeções estejam unidas criando
um nexo existencial. Reunir todas essas instâncias faz com que a sua obra pulse um fluxo de vida,
onde passado e o presente, figuram [re]existências capazes de manter aquecido o pulso do desejo, o
fluxo de vida e a esperança do futuro.

Shannon Botelho

2022

Texto curatorial: Texto
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